AR-15, massacres e desarmamento

Hamad
10 min readMar 11, 2023

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Antes de qualquer debate ético ou político, é importante ressaltar o que de fato o AR-15 é: um fuzil de guerra. Voltamos para os anos 50, quando o Exército dos EUA buscava um substituto para o defasado M1 Garand, até então seu fuzil semiautomático padrão, tendo sido muito utilizado na Guerra da Coreia e também na Segunda Guerra. O M1 tinha problemas que se tornavam sérios em situação de combate, sendo os principais a sua manutenção complicada (e frequente) e a limitação de oito cartuchos. A substituição se fazia necessária conforme as guerras se modernizavam, e é aí que o AR-10 entra.

Isso mesmo, AR-10, — ainda — não o 15. Eugene Stoner, engenheiro e designer de armas da ArmaLite, projetou o AR-10, modelo que futuramente serviria de base para o AR-15. O fuzil de assalto idealizado por ele era muito bom para a época, algo totalmente diferente do que vinham criando. Só nesse projeto ele já resolveria muitos dos problemas que preocupavam o Exército Americano: o AR-10 era mais leve e tinha uma capacidade superior ao M1. Mas o AR-10 não teve o sucesso esperado, e a crise gerada acabou levando sua empresa a ser vendida para a Colt’s Manufacturing Company, e, claro, Stoner migrar de firma.

Já em sua nova casa, Stoner convenceu a Colt a comprar os direitos do AR-10, e assim ele desenvolveu seu sucessor, o AR-15. Apesar do AR-10 ter sido o modelo de base para o AR-15, a nova versão tinha suas diferenças: era mais leve e utilizava um sistema de operação a gás (o do AR-10 era por ferrolho rotativo), vantagens impressionantes que deixavam o fuzil mais rápido e fácil de se operar. Não é que um seja necessariamente mais “avançado” que o outro, ambos têm suas áreas de atuação. Uma vantagem do AR-10 para o 15, por exemplo, é seu uso em longa distância, algo que o novo modelo pecava em comparação a ele.

Em 1958 a Colt apresentou sua proposta para o Exército. Eles até gostaram, mas no início não era sua arma padrão — eles usavam o M14[1] até aí — , e só depois de 4 anos foi adotado como fuzil padrão das Forças Armadas dos EUA. Ele virou o M16 após algumas modificações.

Colt, dívidas e direitos

Se você é um curioso por armas assim como eu, já deve ter lido por aí que o AR-15 é extremamente modular e conhecido por ter várias versões. E saiba que isso tem um motivo bem curioso com um enredo de nascimento de vilão!

Bom, sendo bem direto aqui, digamos apenas que a Colt andou se fodendo muito nos anos 80. Depois do sucesso do AR-15, ela resolveu expandir seus negócios para o mercado civil, já que em muitos estados dos EUA o comércio de armas desse calibre é perfeitamente legal segundo a constituição. Esse mercado não era exclusivo e já tinha grandes nomes por ali, empresas como Smith & Wesson, Remington e Winchester. A Colt, diferentemente das demais, optava por focar no mercado militar, uma decisão que se mostrou um tanto quanto burra quando a demanda por armas de fogo por parte do Exército caiu consideravelmente, deixando a Colt mal das pernas. Para piorar tudo, a empresa perdeu os direitos do seu carro chefe, o AR-15, para a ArmaLite, a antiga casa de Stoner, responsável pelo projeto matriz do AR-10. E, meus amigos, isso tudo somado conseguiu destruir a Colt a ponto de ela ir à falência em 1992.

Tendo perdido os direitos da arma, muitas empresas passaram a fabricar variantes melhoradas do AR-15. A patente do design original expirou em 1977, e aí virou festa. A Colt até conseguiu se reerguer posteriormente, mas já não era mais a principal fabricante do modelo. Hoje em dia temos muitas empresas que trabalham com o AR-15, e talvez você já tenha visto alguns dos nomes: Palmetto State Armory, Bravo Company Manufacturing, Ruger, Daniel Defense, Lewis Machine & Tool, Aero Precision, Spike’s Tactical e Bushmaster.

Dados técnicos

Manual do Operador Colt para Carabinas Avançadas Colt — Monolíticas, 4 x 5,5", 61 páginas.

O AR-15 é um fuzil calibre .223 Remington ou 5,56x45 mm NATO, mas pode ser adaptado para outros. Em quase todas as variantes ele possui um carregador destacável com capacidade padrão de 30 — que também varia, assim como tudo no modelo. Seu diferencial, como já citado algumas vezes, é a leveza (de 2,5 a 3,5 kg descarregado) e seu fácil transporte. Seu cano mede geralmente de 15 a 24 polegadas, e, como isso impacta diretamente na velocidade de saída das balas, os projéteis geralmente saem numa velocidade de 100 a 1260 metros/segundo com alcance efetivo de em média 500 metros. Ah! Ele é semiautomático, ou seja, dispara um tiro por acionamento do gatilho, automaticamente reposicionando o próximo projétil no cartucho e fazendo com que o operador não precise recarregar manualmente, deixando tudo mais rápido.

Citei também que ele é o queridinho dos americanos por ser altamente customizável, e isso é bem real. É difícil falar sobre propriedades técnicas do AR-15 porque ele é múltiplo, cada dono faz o seu conforme quer. Podemos mudar quase tudo nele, desde o calibre até a instalação de um silenciador. A graça do modelo é instalar um monte de coisas e deixar ele com a aparência que quisermos. Realmente o paraíso para qualquer nerd de armas.

A Guerra Fria dos rifles

Você muito provavelmente — e talvez graças ao CS — viu comparações entre AR-15 e Kalashnikov, o AK47. Os dois possuem propostas totalmente diferentes, mas vivem sendo comparados. Não é para menos: são muito eficazes, têm uma durabilidade invejável e são extremamente populares. Assim como o AR-15 foi adotado como padrão pelos EUA, o AK-47 foi adotado pela União Soviética, atual Rússia. O camarada soviético foi projetado por Mikhail Kalashnikov, e inclusive levou seu nome. Ele tem uma excelente fama em ambientes extremos (neve, areia, lama e, se duvidar, até chuva de fogo) e exige pouca manutenção, por isso foi um sucesso nas guerras em que a URSS se envolvia. Além disso, ele é barato e simples de ser usado.

Como venho dizendo nesse texto, é besteira querer colocar armas com propostas diferentes para competir entre si. Cada uma tem suas vantagens e desvantagens. Na dúvida, escolha gostar de ambas, assim não perde nada.

Em todo caso, fica como recomendação esse artigo bem legal do GunDigest, por Tiger McKee, comparando os fuzis e dando um panorama geral.

Polêmicas e problemas com a mídia

Seguinte, você já deve ter percebido o quão noob friendly[2] o AR-15 é. Ele foi projetado para facilitar ao máximo sua usabilidade no campo de batalha, e com isso ficou cada vez mais fácil de personalizar, transportar, atirar, recarregar… Você não precisa ser um gênio para imaginar o que vem a partir disso.

Vamos imaginar uma situação de combate corpo a corpo a curta e média distância. Precisamos priorizar algumas coisas aqui: precisão, confiabilidade, velocidade e facilidade de operação. E, não chocando ninguém, o AR-15 gabarita isso. Ele é rápido. Ele é leve. Ele é relativamente acessível. Ele é modular. Ele é preciso. Ele é legalizado segundo a Constituição Americana. E é isso, não precisamos de mais nada.

“Sendo necessária a existência de uma milícia bem organizada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas não será infringido[3]”

A Segunda Emenda da Constituição americana, de 1787, assegura o direito dos cidadãos de possuírem armas. Isso aconteceu porque na época não existia um exército estatal como conhecemos hoje, então a necessidade de milícias era algo verdadeiro para garantir a manutenção do poder. Como a Constituição Americana é pequena e abre muita margem para interpretação e zonas cinzentas[4], hoje em dia a legislação tenta colocar restrições, e alguns estados adotam leis são mais severas do que outros, mas no geral é bem faroeste quando comparamos com o nosso contexto aqui do Brasil. Os Estados Unidos têm, acima de tudo, armas como sendo algo cultural, e até as mais “pesadas” estão presentes no dia-a-dia de muitos civis por lá.

Fuzis de nível militar são perfeitamente acessíveis em alguns estados, sendo “barrados” apenas pelo fator econômico (de serem às vezes caros). Jovens podem comprar inclusive pela internet, customizá-los e utilizá-los em locais apropriados para treino. Não cabe a mim julgar a moralidade disso — até porque eu acho armas bem legais, por mais que tenha uma visão não tão clara sobre a legalização delas nessa escala — , mas fato é que esse é um problema para eles. Não é nenhuma novidade atiradores em massa optarem por AR-15 e suas variantes durante seus crimes de ódio. Talvez o mais recente e notável tenha sido Salvador Ramos, um menino de 18 anos que abriu fogo em uma escola primária em Uvalde, Texas, e matou 19 estudantes. Posso citar também Payton Gendron, 18, que matou 10 afro-americanos em Nova Iorque no ano passado. Em Las Vegas Strip, em 2017, Stephen Paddock matou 59 pessoas. No cinema de Aurora, em 2012, James Holmes matou 12. Também em 2012, Adam Lanza, 20, que matou 26 pessoas na escola Sandy Hook, além de sua mãe. Em San Bernardino, Syed e Tashfenn fizeram 14 vítimas. Na escola Stoneman Douglas, 2018, 17 mortes nas mãos de Nikolas Cruz. Na boate Pulse, 2016, 49 por Omar Mateen. O que todos eles têm em comum? A arma usada.

O debate acerca do desarmamento é algo bem comum por lá, principalmente pela alta taxa de tiroteios em massa envolvendo armas de fogo. A organização Gun Violence Archive rastreia e investiga tiroteios em massa por todo o território americano e, segundo seus dados, em 2021 o número de casos passou de 100. Desses, estima-se que pelo menos 17 envolvam AR-15 e suas variantes. O FBI diz que, de cada 27 tiroteios em massa com alta taxa de letalidade (10 ou mais vítimas fatais), em 11 deles temos o uso de armas semiautomáticas, sendo quase sempre o AR-15. A agência também divulgou um estudo realizado entre os anos de 2000 e 2013 que mostra que 24% desses tiroteios foram realizados com o mesmo tipo de fuzil que abordamos aqui. A Everytown Research reforça esses dados, mostrando que de 2009 a 2013, um semiautomático foi usado em pelo menos 173 ataques em massa, sendo usado especificamente o AR-15 em 59 deles (34%).

Por outro lado, é importante citar que, como eu disse diversas vezes, o AR-15 é extremamente popular entre os civis, e nem todos eles têm más intenções. Se faz necessário quebrar a crença de que todo proprietário de arma é inerentemente violento e um potencial assassino. Muitos dos proprietários são colecionadores, caçadores ou até mesmo pessoas que, assim como eu, gostam de arma como um hobby. Você pode até questionar o quão mórbido isso possa ser, mas jamais atribuir um crime a alguém que nunca o cometeu. É necessário que os donos de armas não sejam socialmente lidos como agressores em potencial, porque uma imensa maioria deles de fato não é — porque, se fossem, as estatísticas de crimes envolvendo esse tipo de arma seriam bem maiores.

O governo federal americano não divulga a quantidade oficial de portadores de AR-15, mas existem diversas estimativas confiáveis. O Departamento de Justiça dos EUA alega que 2 milhões de verificações de antecedentes, etapa necessária para a compra de armas de fogo, tenham sido realizadas em 2018. Essa verificação é generalista, ou seja, vale para todas as armas, não só o AR-15 ou rifles semelhantes. Porém, é importante ressaltar que o AR-15 segue sendo um dos rifles mais populares, então cruzando dados podemos concluir que muitas dessas verificações eram para a compra de rifles do tipo. A NSSF[5] diz que 16 milhões de semiautomáticos foram produzidos ou importados de 1990 a 2016 no território americano, e as vendas anuais tenham sido cerca de 1 milhão em média. O ATF[6] diz que em 1986 tínhamos 1,5 milhão de rifles nos EUA, e em 2017 o número chegou a 5,5 milhões. Existem também muitos proprietários sem registro. Não temos dados exatos e oficiais sobre fuzis legalmente registrados, mas as estimativas chegam aos milhões. Desses milhões, a imensa maioria tem se mostrado responsável.

Notas de rodapé:

[1] Fuzil do final dos anos 40 que substituiu o M1. Posteriormente foi substituído pelo M16 (AR-15), que tinha uma operação mais suave e era mais fácil de transportar.

[2] Significa “amigável para iniciantes”. Usada em jogos para se referir a ferramentas, dispositivos ou sistemas que são projetados para serem fáceis de entender e utilizar, mesmo por usuários inexperientes ou iniciantes.

[3] “A well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed.” no original.

[4] Termo usado para definir áreas nebulosas, incertas ou ambíguas, onde as fronteiras ou limites não são claramente definidos ou são difíceis de discernir, portanto não é claro se uma ação é legal ou ilegal.

[5] NSSF é a sigla para National Shooting Sports Foundation, que em português significa Fundação Nacional de Esportes de Tiro. É uma organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos dedicada a promover e preservar o esporte do tiro

[6] A ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) é uma agência governamental dos Estados Unidos que tem como objetivo investigar e regulamentar o comércio de armas de fogo, explosivos, álcool e tabaco no país. A ATF é responsável pela aplicação de leis federais relacionadas a armas de fogo e explosivos, incluindo a emissão de licenças para lojas de armas e a investigação de crimes envolvendo armas de fogo. A agência também é responsável pela coleta de dados sobre vendas de armas e pela implementação de regulamentações para prevenir o tráfico ilegal de armas.

Links:

1. Gun Violence Archive. https://www.gunviolencearchive.org/reports/mass-shooting
2. Federal Bureau of Investigation (FBI). https://www.fbi.gov/file- repository/active-shooter-incidents-in-the-us-2018–2019- 032320.pdf/view
3. Everytown Research https://everytownresearch.org/ar-15-style- rifles-not-just-for-mass-shootings/.
4. Vox. https://www.vox.com/policy-and- politics/2017/10/2/16399418/us-gun-violence-statistics-maps-chart
5. The Trace https://www.thetrace.org/2019/08/how-many-people- shot-mass-shootings/
6. Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives (ATF) https://www.atf.gov/firearms/docs/report/2018-annual-firearms- manufacturing-exportation-report-atf-form-53009/download
7. National Shooting Sports Foundation (NSSF). https://www.nssf.org/gun-industry-survey-report-2017/

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